domingo, 30 de outubro de 2011

O senhor Cartola Azul - Final


(imagem: lixo extraordinário)

a grama estava alta e cheirava bem, o casal corria por ali, ela de saião bege, camiseta regata branca e o cabelo dividido em pequenas tranças. Ele, calças também bege, largas e camiseta azul da cor do céu. Estavam na praia de chinelos e mãos dadas correndo para o mar.  A moça alta de cintura bonita e cabelo louro segurava a mão direita do rapaz, ligeiramente mais alto. Formavam um belo casal, de longe pareciam irmãos, tratavam-se com uma delicadeza de movimentos suspensos que fugiam totalmente do ritmo do senso comum, eram de Marte. Aquele dia, um feriado nacional. O lugar, o mais pacato litoral.
 Longe e a sós. Eram hippies.
Forraram sobre a grama uma toalha vermelha listrada, não tinham cesta, mas tinham tudo. Comeram, dançaram e tocaram violão, ela buscava flores para botar nos cabelos, enquanto ele lia e divagava.

Segunda-feira  e a toca na cabeça faziam a moça não mais ser hippie, durante dez horas de segunda a sexta ela era assistente de cozinha em um restaurante chinês, cortava, lavava, mexia, secava. O rapaz, porteiro de um prédio no centro. Calças de sarja verde musgo, camisa manga longa branca e casaco de lã, atrás da recepção e com o seu óculos anos cinquenta, ele era comum, não tanto pelo brilho nos olhos e pela sublimação da face. Ao fim do dia, somente as sextas eles iam juntos para casa, passeavam antes pela avenida Souht, de bermuda e chinelo, de vestido e rasterinha, eram simples e eram belos. A casa, um apartamento com sala, quarto, banheiro e cozinha, tinha também uma varanda com pés de chá e aquelas plantas que pendem de seus vasos fixados ao têto. Ali ele lia, ela dormia. Ele tocava, ela cantava. Ela cozinhava, ele comia, ela beijava, ele mordia.

- Certa vez enquanto a moça cuidava das plantas na varanda o rapaz a observou, sentia  um admiração celestial por ela, tão meiga, tão dedica para com a vida e com ele. A apaixonou-se a premira vista pela forma como ela se auto conduzia no mundo, admirava o desapego dela por coisas banais como, como carreira corporativa, dinheiro e luxo, adorava sua aspiração para as coisas simples, como costurar as próprias roupas ou compra-las em brechós, dedicar-se realmente ao que se gosta independente se é rentável ou não, o que segundo ele, quando se faz o que gosta, faz-se, se faz  a coisa mais rentável do mundo.
 Do sofá, ele se perdeu nos movimentos dela, os cabelos amarelados que desciam pelo ombro exposto, todo pontilhado de sardas. Ela percebeu que estava sendo observada, na melhor colocação, admirada. O rapaz se lebvantou e foi até a moça, ajoelhou-se logo ao lado e a beijou na testa. - te amo. - Disse ele com a face marcada por um sorriso singelo.
Tinham milhares de planos para o futuro, no próximo ano por exemplo ele iria para a universidade estudar filosofia e política. Ela faria a  tão desejada inscrição na escola de artes plásticas. Pensavam também em se mudar pra o interior, perto da federal na qual ele prestara vestibular. Estavam a meses planejando tudo, guardando dinheiro e prestes a fazer as malas, foi então que ela caiu, desmaiou nos braços dele. A princípio o rapaz supôs ser uma brincadeira boba dela, mas não fora, explodiu ali uma sucessão de desespero, foram ao hospital mais próximo, voltaram para casa horas depois, mas, dali em diante nada fora como tinham sido, exames, consultas, e uma sucessão de outras coisas, de repente o brilho nos olhos tornou-se desespero, incerteza. Fora tudo muito rápido, seis meses e ela já não tinha mais cabelos, seu corpo esbelto e forte, cheio de vida tornara-se uma estrutura seca e apagada. Ela decidiu morrer no campo, implorou para que o rapaz a tirasse do quarto frio e sem vida do hospital, ele atendeu o pedido, a levou para o interior, a cidade para qual planejavam se mudar.
Certa tarde sentados no sofá de uma casa alugada ela o viu chorando e o abraçou, sorriu para ele, ele tentou sorrir também mas não conseguia, por isso tornou a chorar.

- Ei, sou eu quem está morrendo e não você!
- Somos nós dois então. - respondeu ele.
- Sabemos que é inevitável, acredite, foi bom. Você fez o que pode, e sou grata por ter atendido meu pedido e ter me trazido até aqui, está é nossa vida, foi assim que planejamos e é assim que a estamos vivendo, vou partir com todas as promessas cumpridas, com todos os sonhos realizados, mesmo que a curto prazo. Apenas adiantamos nossas vidas, estamos fazendo em seis meses  o que havíamos planejado fazer em sessenta anos.
 Partirei em paz por ter sido honesta e justa comigo e com você. Mas quando eu tiver ido de verdade, não quero vê-lo chorar, não quero ser evocada do além para consolar a tua dor. Eu não quero que exista dor. Quando eu tiver partido, quero me contentar em ti observar seja lá de onde for que eu estiver e ver que você permanece bem, realizando a cada dia tudo que havíamos planejado e prometido um para o outro.

A garota faleceu quatro anos depois em uma tarde de sábado enquanto cuidava das flores no jardim de casa, mas não sem antes de ter tido uma vida plena, não sem antes de criar seus quadros e suas instalações, não foram nunca grandes obras expostas em salões pelo mundo, mas foram singulares para ela e para ele, cuja maior obra era suas vidas, a vida deles. Quando suspirou pela ultima vez o rapaz segurava suas mãos e sorria sem tirar os olhos dos dela, eram circunferências azul  berrante e que nem de longe demonstravam tristeza, apenas satisfação.

domingo, 23 de outubro de 2011

Rotina.



Cinco e vinte, abro os olhos, pulo da cama. É segunda-feira, estou feliz! Nasci outra vez, vou morrer em cinco dias.
Calço meu chinelo de couro, o banheiro é a minha primeira parada. Mijo, cago. Escovo os dentes.
O chuveiro ligado reflete um fetiche, água quase fria, meio morna. O celular sobre a privada toca Beatles, as vezes Red hot, depende da segunda, nesta em especial o sol acordou antes de mim e está bonito, por isso ouço Samuel Rosa. Me seco, me toco, me detesto e me adoro.
 Camiseta por baixo, camisa por cima. O sapato furou, vou com outro menos furado mas que não é sapato. Cabelo cortado a dez reais e unhas lixadas, bom humor no corpo e na alma.
Na mochila caderno, óculos, molho de chaves e a passagem em cartão. Hoje levo comigo Victor Hugo, não paguei a biblioteca, Weber só semana que vem.
Podemos ir, mas não sem antes tomar um copo d´água.
No portão o segredo é girar a chave duas vezes para a direita e sair, depois duas vezes para a esquerda e fechar.
O sol está alto, eu apreço o paço. No ônibus o cobrador não ouvi o meu bom dia. Por quatro reais e cinquenta e cinco centavos eu tenho o direito coletivo de ir em pé, com mochila entre as pernas e braço levantado. Me sinto assaltado!
Eu durmo em pé e sinto ser levado a curto prazo, mas chego, chego cansado. Subo, corro, sento, levanto e entro. Subo novamente, abro, fecho, abro outra vez e outra. Tiro, me visto, lavo o rosto, saio, bato, imprimo e desço.
- Bom dia!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O senhor Cartola Azul - parte 1.



Magrelo e saltitante, ele era assim, todo felicidade. Seu corpo igualava-se à uma prancha, reta e seca. Cabelos negros e lábios desenhados minuciosamente. Olhos ovais e grandes, orelhas proporcionais ao corpo.
O senhor Cartola Azul era chamado assim por certa ocasião na qual adquiriu incomum cartola de cor azul. Neste mesmo dia ele comprou um par botas marrom, tamanho quarenta e dois. Chegada à hora do sol ir embora o senhor Cartola Azul vestia sua calça xadrez e punha sobre os ombros um velho blazer desbotado. Após amarrar bem firme o cadarço das botas ele sai mundo afora com seu livro "sabe-se lá qual" e com seu semblante de suposições imaginárias. Andava de maneira incomum, a passos largos e com os braços ao vento, todo despreocupado. Era ímpar aquele homem que gostava de acordar as cinco da manhã de uma segunda-feira só para ver o orvalho.
O senhor Cartola Azul passava o tempo livre entre as estantes da biblioteca municipal e os cafés da rua Barão d'vila. Toda sexta, por volta das quatro e meia da tarde ele ia  ate a loja de discos e ocupava uma sala nos fundos, cedida gentilmente pelo senhor Bernardo, que o conhecia de longa data e tinha por ele grande apreço. Uma vez lá, aquele incomum senhor ouvia discos antigos e lia os mais belos livros, fossem eles romances, aventuras ou até mesmo filosofia. Fosse qual fosse o livro, o senhor Cartola Azul lhe dispensava a mais culta e inabalável atenção.
Havia naquele homem um tipo raro de felicidade, alguns descrentes diziam que tudo aquilo não passava de uma mascara feita sob medida para esconder sua desgraça.

(desenho - Arlan Souza)